quinta-feira, 16 de março de 2023



A BELEZA NUNCA SAI DE MODA

    Venho acalentando há algum tempo certa birra contra a necessidade que muita gente aparenta ter de gostar de um filme pela simples razão de ele ter se dado bem no Oscar. Sem saber do que se tratava, logo na semana de lançamento assisti no streaming "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo". Achei péssimo! Para usar uma expressão do tio Paulo, verdadeira "loucurada". Não é porque o mundo digital vai se tornando impenetrável para os pobres mortais dentre os quais me incluo, que o cinema como arte tão democrática que é precise ser tão complicado também. Além de ser  um filme plasticamente feio em que pese o critério beleza ser motivo de discussão ao tratarmos de arte. 

    Porém é de beleza mesmo que quero falar para sugerir a um ou dois leitores desse blog o lindíssimo filme "Os Banshees de Inisherin". A palavra banshee (do gaélico bean sídhe) é o nome dado a um espírito feminino presente nas histórias tradicionais irlandesas cujos gritos anunciam que alguém na  família irá morrer. Assistido em condições precárias na tela minúscula do avião na volta de minhas férias, me comoveu profundamente. Belissimamente filmado e com interpretações exatas dos dois protagonistas, o filme fala do que nos é mais caro: relações pessoais. Uma relação entre dois grandes amigos é quebrada e em algum momento um relembra que a amizade é como dançar um tango, é preciso que os dois estejam sempre em perfeita consonância. 

    Mas não é só isso, o filme trata também do desejo de imortalidade do homem que vai se encaminhando para os anos finais de sua vida, da recusa à mesmice dos mexericos e da brutalidade do lugarejo, do delicado afeto aos animais, da sede por algum tipo de arte e cultura quando a única diversão é um pint de cerveja ao final do dia. Tudo encenado nas paisagens remotas de uma ilha irlandesa. Só mar, montanhas riscadas por muros de pedra, vento e solidão como cenário para as emoções que cercam as relações humanas; lá estão amor, ódio, frustração, violência, delicadeza, misticismo, luto, perversidade. 

    E que trilha sonora!!! É maravilhoso como o cinema continua, a despeito de robôs, metaverso, avatares e o que mais temos de moderno hoje em dia, a nos encantar e comover com boas histórias. Sinto falta de um interlocutor para tratar de tantos e tão ricos detalhes que o filme mostra ou só insinua... Não percam!






Biscoito no seu lugar predileto da casa. 


sábado, 11 de fevereiro de 2023

    A artista dos oceanos


    Quando a Paula passou no vestibular da UnB para Comunicação, começava uma jornada em direção a um futuro que certamente ela jamais imaginou. Passou de primeira contra as expectativas do pai: essa menina dorme demais, como é que vai entrar para a faculdade? Lá estava ela com seu jeito low profile de ser. A Paula é para dentro, fala discretamente, não faz mexericos. Ela pensa e planeja a própria vida, sempre com uma lista de objetivos que vai alcançando com muito método e trabalho. 
Desde cedo já tinha uns estágios remunerados. Econômica até o último fio de cabelo, só trocava o sapato por um novo quando o velho meio que furava. Não é exagero! De início escreveu no jornal da própria faculdade, depois editou junto com o pai o jornal do Hospital Universitário. Foi jornalista do Correio Braziliense, o jornal da capital da República. Sempre inquieta, movida por forte sentimento de independência e liberdade, ela criou a  própria empresa de publicidade que há pouco completou 20 anos de existência. Não é pouco! Não tem sócios, a empresa é ela e seus funcionários que comanda com inteligência, planejamento, firmeza.
    Não sei até que ponto influenciada pelo gosto de seu pai ou por puro interesse pessoal, logo cedo na faculdade foi estudar fotografia. Fotografou em preto e branco, aprendeu revelação em papel (tem quanto tempo isso???). Foi também graças a sua constante inquietação que considero saudável, porque não se acomoda, porque ousa, porque não se intimida diante de dificuldades mas ao mesmo tempo não avança além de suas possibilidades, que a Paula mudou de rumo. E mudou porque tem coragem para desbravar o novo, aprender, trabalhar muito, mergulhar concreta e simbolicamente nos seus projetos. Encontrou debaixo da água um mundo que lhe acolheu melhor e que trouxe, penso eu, outro sentido a sua vida e com ele novos desafios e lá vai outra lista de objetivos! 
    Agora estava lá do outro lado do planeta. Graças a sua arte, porque é assim que hoje denominamos a Paula, jornalista de formação, publicitária de profissão, depois mergulhadora amadora, profissional em seguida, Artista. Assim mesmo, com maiúscula, porque figura entre um seleto grupo de premiados fotógrafos subaquáticos. Ministra cursos, ganha concursos, tem suas fotos publicadas internacionalmente. A Paula é f. A atual viagem foi um prêmio por seu trabalho. No exótico conjunto de ilhas da costa da Indonésia chamado Raja Ampat (quatro reinos no idioma Bahasa, língua oficial da Indonésia) Paula olhou com seu jeito muito próprio de enxergar o que muitas vezes nem parece estar ali. Observou, reparou e registrou para deleite de nossos olhos a vida em águas tão distantes. Certamente traz imagens que lhe valerão outros tantos prêmios. 
    O André ficaria de início um pouco mais careca de preocupação, mas seguramente cheio de orgulho por essa pessoa que é a Paula Vianna! E hoje é aniversário dela: parabéns Paula!




Esse foi o veleiro onde a Paula viveu por uma semana, ou não, já que passava mais tempo mergulhando do que a bordo.



Paula tendo ao fundo a paisagem inacreditável de Raja Ampat.

                             A SAGA DO EMAIL PERDIDO


    Dia desses escrevi um textinho que em seguida publico e qual não foi minha surpresa ao tentar sem sucesso abrir este blog. Fosse um singelo caderno e uma caneta lá estaria tudo escrito. Mas a internet tem dessas artimanhas de nos escapar muitas vezes. A frustração de ver o blog na tela em frente e não poder acessá-lo me causou uma angústia que não pude conter sozinha. Precisei apelar ao nosso vizinho e amigo João que sempre salvou o André das armadilhas e meandros obscuros da informática. Não conseguimos de modo algum usar os e-mails do André com as respectivas senhas que cuidadosamente ele anotou. Mexemos, viramos e ao final aceitei a sugestão do João: telefona e pede a reativação do Terra. Pois não é que deu certo? E para meu maior espanto descobri que o email que eu buscava não tinha nada a ver com os anotados aqui. O André usava para gerenciar este blog mercedesfabiana1@gmail.com. Vai entender...

    Obrigada amigo João.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

                PARA O AMIGO SÉRGIO





    Pouco tempo depois de nos mudarmos para nossa casa, o amigo Sérgio veio nos visitar e de presente trouxe na bagagem dentro do avião frágil mudinha. Maior trabalheira! Quem fez uma cova espaçosa para que a pequena árvore pudesse estender sem esforço suas raizes na bruta terra do cerrado foi o Seu Onofre, nosso antigo jardineiro. A primeira foto abaixo ilustra a ocasião (a qualidade da fotografia que copiei com meu celular está péssima, mas o registro do momento está lá). Perguntado sobre o nome: árvore da felicidade respondeu nosso amigo! Felicidade era mesmo o que ela nos proporcionava por estar sempre florida. Em cada extremidade de galho um buquê de flores de cor fúcsia, verdadeiro paraíso para abelhas. Anos depois vim a esclarecer que o nome verdadeiro era jatrofa,  de nome científico Jatropha interregima mais conhecida como peregrina ou jatrofa picante. Espécie de planta com flor na família spurge, Euphorbiaceae. Produz cápsulas de sementes lisas, salpicadas e tóxicas e portanto se recomenda plantar longe do alcance de crianças. Nunca tivemos problemas desse tipo, a Gabi brincou muito debaixo de sua generosa sombra.

    Por muitos anos nos alegrou a vista e nos protegeu do sol à beira da piscina. Incontáveis manhãs de domingo desfrutamos de sua sombra; encontros, conversas e silêncios, música, a vida mesmo passando ali. Ano passado ela começou a secar, podamos, adubamos e não houve remédio. Morreu. Mas como o jardim é um ser com um forte propósito de permanência ela segue viva nas filhas, mudas nascidas de suas raizes. A essa (da outra fotografia, me desculpem agora pela mangueira ao fundo), o André nomeou Heloísa em homenagem à linda Helô filha do Sérgio. Heloísa, a de pernas longas. Andava meio fraquinha, a planta, não a Helô! Suas flores não vingavam, não sei se um pouco saudosa da mãe em cuja sombra nasceu ou de quem a batizou. Há alguns meses veio se juntar às suas raizes um punhadinho de cinzas do André. Está aqui agora toda faceira, florida, crescendo rápido em busca de luz. É a árvore da felicidade, ainda que agora a felicidade seja algo diferente.

Obrigada a você amigo Sérgio!

 




sábado, 31 de dezembro de 2022

IN MEMORIAM

 

Aqui no planalto central não usamos muito a palavra verão; as estações na nossa região não obedecem às divisões clássicas. Aqui temos a seca e as águas. E posso dizer que é muito bom assim. Durante a seca com a grama completamente torrada, o céu enevoado e poeirento, nossos olhos se enchem da beleza dos ipês amarelos. Nas águas, céu chumbo, nuvens baixas, verde pra todo lado. Nosso verão é feito de águas. Nesse ano as águas estão tão chuvosas como há muito tempo não se via. Desde o início de novembro chove, e chove muito forte quase que todos os dias. As noites desde então vão ficando cada vez mais fresquinhas, puxamos um cobertor, bebericamos um vinho tinto de noite. O povo do litoral não vai entender nunca isso. 

Essa última sexta-feira do fatídico ano de 2022 não foi diferente: ao invés de chope no boteco da esquina com espuma caindo em cima do pé se estivéssemos no Rio de Janeiro, hoje me decidi por sopa. Sopa no verão?! Descongelei um pacote de carne de panela do freezer, e tal qual a madeleine do Proust, fui invadida pela memória. Este pacote é metade da carne com a qual fiz a última sopa que o André ainda comeu. O fazer, o preparo do que vai nos alimentar, as lembranças de tantas outras sextas-feiras, de tantos outros jantares, de todos os dias que partilhamos juntos, muitos alegres, alguns tantos tristes, mas acima de tudo a memória de uma vida em comum é a nossa história e não há ficção que dê conta disso. 

Nesse ano de 2022 muitas foram as perdas de pessoas essenciais, que nos impactaram e que portanto não morreram de todo, porque seguem conosco com suas ideias, seu brilhantismo, sua genialidade. Senti muito a morte da Nélida Piñon, uma mulher que desbravou um meio literário fortemente masculino, ainda que muito livre no seu viver, foi fortemente devotada às suas raízes, ao seu passado, aos seus antepassados. Coisa meio rara nos dias correntes. Tinha uma devoção quase que religiosa a Homero, da qual compartilho pois não pode haver nada mais lindo que os versos que antes de serem escritos tantas vozes repetiram para que pudessem chegar a nós. Da Nélida no entanto, a frase mais marcante para mim é aquela que descreve a emoção ao ganhar um cachorro salsichinha, o Gravetinho: “Eu não estava preparada para esse amor”. Sei bem do que ela está falando. O amor nos desarma.

Tantos outros morreram nesse ano que vai acabando. O André tinha uma certa birra da Gal Costa “por que ela tem que gritar tanto?”. Mas como esquecer “Brasil”? Atualíssima para os dias tristes que ora vivemos nesse nosso país. 

Celebrou-se o centenário de nascimento do José Saramago. Já morto há algum tempo mas precisamos celebrá-lo sempre. Que privilégio poder ler o que escreveu esse homem. Sua escrita nos encanta, nos impacta e nos transforma. No seu livro muito pessoal  “As pequenas memórias” de 2006, ao relatar  eventos da infância e juventude, sob a amorosa influência dos avós maternos, lavradores, analfabetos, ele nos comove com esse trecho acerca da preciosidade da vida: “Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: ‘O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.’ Assim mesmo. Eu estava lá.”

Vamos aqui contando os mortos, somando saudades, sem lágrimas que cheguem para falar da falta que nos fazem. Se pudesse crer numa outra vida estaria agora imaginando o André na imensa fila para chegar junto ao rei. E ao se deparar com o Pelé, ele repetiria o gesto da infância quando o viu jogar em Guaratinguetá: um tapinha nas costas e a frase “Oh Pelé!”.

 


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

    Em meio à arrumação que a morte nos impõe, se pretendemos evoluir no doloroso processo do luto organizamos gavetas, caixas, armários. Quanta coisa guardada, meu deus!  E qual o propósito? Na tentativa de desocupar um móvel meio pesadão,  espaçoso demais (o André certamente diria que eu estava tentando me descartar dele próprio!?), encontrei um de seus inúmeros diários. Este chama a atenção pela letra caprichada, as datas lá estão. Reconheço alguns momentos, de outros não me lembro  e nem poderia porque essa é uma memória dele. Não sinto que estou invadindo, xeretando: o diário ficou aqui por quase trinta anos dentro de um armário e se hoje eu perguntasse a ele "o que é isso?" tenho quase que certeza da resposta "não faço a menor ideia". O que quero dizer é que esse diário há de ter servido naqueles tempos para uma reflexão sobre aqueles dias. Reflexão??? Palavrinha ruim essa na falta de outra melhor. Serviu para  pensar, exercitar a autocrítica e conversar de forma muito verdadeira consigo mesmo. Transcrevo aqui um trecho. A grafia e a pontuação são dele. O pequeno poema também, me corrijam se estiver enganada, mas procurei e não achei autor. Mesmo que haja penso que está bem a propósito.

23/12/1994: "Véspera de Natal. O cheiro de pêssego no ar, Bach, violino e contínuo. E uma Paz difícil de aceitar. Vontade de escrever ao irmão distante: nada dizer, a não ser da saudade, das lembranças mais queridas, de uma vida que passou.

Como tem passado a Vida!

Quanto ainda há de passar?

Água que corre

às vezes límpida

de riacho quase puro

às vezes turva

de enchente lamosa

transbordante

sem margens o rio da Vida."


domingo, 30 de outubro de 2022


 ARGENTINA 1985


    A Argentina viveu certamente a mais cruel e sangrenta das ditaduras modernas da América do Sul. Em nome do combate à grande ameaça do comunismo daqueles idos especialmente na década de  70 os mais atrozes crimes foram cometidos. Diferentemente de  nós brasileiros os argentinos já há um bom tempo tentam expurgar os excessos.

    O indefectível Ricardo Darín encarna no filme "Argentina 1985" o promotor Strassera que de forma inédita preside um tribunal civil que vai julgar os crimes perpetrados por grupo de militares das mais altas patentes. Há que convencer o povo, o cidadão comum que não acredita que todo o horror se passou sem que dele se apercebesse. Não viram ou preferiram não ver? Os relatos duros, difíceis não resvalam no sentimentalismo. Strassera é um destemido e o grupo de jovens promotores que o segue são incansáveis na procura por testemunhas, na reunião de provas, na demonstração de coragem. 

    As mães e agora avós da Praça de Maio continuam esperando uma resposta, um corpo, um atestado de óbito. Não desistem da luta contra a opressão e obscurantismo que pautou aqueles tempos. Strassera invoca uma frase da qual precisamos nos apropriar: "Nunca mais".


ARGENTINA 1985 disponível na plataforma  PRIME VÍDEO 

sábado, 8 de outubro de 2022

NOBEL DE LITERATURA 2022


    Neste ano de 2022 o prêmio Nobel de Literatura foi concedido à escritora francesa Annie Ernaux de quem tive conhecimento pouco tempo faz. E ainda que não tenha lido nenhum livro seu já me sinto muito interessada no que ela tem a dizer após ter assistido há algumas semanas o filme baseado em sua obra "L'evenement" disponível por aqui com o título "O acontecimento". Ela narra no livro que deu origem ao filme a saga de uma jovem mulher, no caso ela própria, que na década de  60 estuda  literatura para se tornar não professora como é esperado então, e sim escritora, e no entanto tem seus sonhos paralisados quando se vê às voltas com uma gravidez indesejada. No filme com  muita economia de sentimentalismos é impossível não se angustiar com a difícil jornada frente ao preconceito do meio  que a segrega e a muralha de regramento fundamentalmente machista que a impede de fazer um aborto. Em que pese a discordância de tantos em relação ao tema, não podemos ignorar a necessidade de olhar de perto o problema. E é isso que para mim o filme consegue fazer graças à escrita autobiográfica  dessa  autora nascida em 1940 na Normandia e a primeira  mulher  francesa a receber o Nobel de Literatura.
    Podemos entender o que ela defende quando no filme ao ser questionada por um professor a respeito da causa de seus repentinos insucessos escolares: "Você está doente?", "Tenho uma doença que só as mulheres tem e que as transforma em donas de casa." Annie Ernaux é feminista. Sua obra é construída sobre sua biografia, vinda de uma família modesta estuda com dificuldade encom sua arte ao dizer  "eu" está a falar de experiências comuns. Annie Ernaux pertence à categoria de mulheres muito necessárias nesse momento em que o conservadorismo tenta se apoderar de comportamentos, ideias e escolhas dos indivíduos. Seu livro mais recomendado é "Les années"  ("Os anos") de 2008 disponível no Brasil pela editora Fósforo.
    Recomendo muito o filme "O acontecimento" na HBO MAX.